Nessa época de pandemia percebemos o aumento de pacientes se queixando da memória, com um perfil diferente de outras épocas. São pacientes mais jovens, que já apresentaram ou não a infecção pelo vírus Covid-19, em plena atividade profissional, por vezes, comprometendo o desempenho do “trabalho em casa”, mas que também se queixam de uma piora para lembrar de coisas simples, corriqueiras do dia-a-dia, como perder objetos pessoais (óculos, chaves), esquecer datas, itens de compras no supermercado.
A literatura médica já apresenta alguns resultados de estudos realizados (ou em andamento) de pacientes recuperados da infecção aguda (com remissão dos sintomas respiratórios) que continuam relatando fraqueza, fadiga, dificuldade de atenção e concentração, perda de memória de curto prazo, mesmo após períodos prolongados como 50-80 dias após período de hospitalização (em 74-88% dos internados). Mas uma parcela dos pacientes com infecção leve (sem necessidade de internação hospitalar), também apresentaram as mesmas queixas. Portanto, ainda não podemos correlacionar a gravidade da infecção com esses sintomas relatados pelos pacientes.1
Algumas pesquisas realizadas no Brasil estudam as sequelas da infecção por Covid-19 no cérebro. Dados preliminares de estudo ainda que está sendo realizado no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor/FMUSP), avaliou cerca de 180 pessoas que se recuperaram de infecção de Covid-19, aplicando um teste neuropsicológico digital, demonstrou que 80% dos indivíduos apresentaram algum grau de comprometimento de atenção, memória, compreensão de linguagem, bem como alterações funcionais como dificuldade no raciocínio e execução de tarefas comuns no dia a dia. Estes resultados se correlacionam com a intensidade dos sintomas cognitivos com a gravidade da infecção, porém ainda há necessidade da publicação definitiva do estudo. Ainda não há uma explicação fisiopatológica, principalmente nos quadros de infecção leve.
Várias publicações têm tentado esclarecer as sequelas da infecção viral no funcionamento cerebral. Uma pesquisa da Universidade Estadual de Campinas, que ainda está em fase de submissão, relatou lesões em neurônios de 26 pacientes que morreram pela doença, e estariam relacionadas à hipóxia grave que sofreram durante a infecção. Estudos de imagem com ressonância magnética relacionam lesões nos cérebros de pacientes pós-Covid com o de pacientes que sofreram hipóxia por outras causas, com resultados similares nos dois grupos. Há ainda a possibilidade de agressão direta do vírus ao nervo olfatório (terminações olfatórias da mucosa), sendo essa a principal justificativa para a anosmia (perda de olfato) e ageusia (perda de paladar) observada em muitos indivíduos infectados, possibilitando a investigação de invasão do sistema nervoso central por essa via. Todas essas complicações, em parte, estariam relacionadas à versatilidade do vírus em invadir diferentes tipos de células, com a invasão celular, multiplicação intra-celular, e, após atingir certo número de cópias, ocorre o rompimento da membrana, destruindo-as para infectar outras células e repetir o processo. Com a invasão dos monócitos, seguida da liberação na circulação e diferenciação em macrófagos, em resposta à crescente carga viral, os monócitos liberam grandes quantidades de proteínas (citocinas) que agravam a resposta inflamatória e, consequentemente, o quadro da doença. Essa resposta inflamatória exacerbada do sistema imunológico à presença do vírus pode fazer com que as células de defesa ataquem parte do tecido saudável em torno da área afetada, potencializando os danos ao órgão acometido comprometendo seufuncionamento. É o que ocorre no sistema renal de pacientes infectados, onde até 36% são comprometidos, podendo chegar a até 90% nos pacientes internados em UTI. Essa reação imunológica exacerbada pode justificar alguns casos mais graves de encefalopatia pós-Covid, com alteração de comportamento, quadro confusional agudo, crises epileptiformes, rebaixamento de nível de consciência, potencialmente reversíveis com tratamentos imunossupressores e/ou imunomoduladores.2
Uma outra parcela de pacientes que se queixam de memória é constituída de pessoas que não desenvolveram a doença ou sequer foram infectadas, e que estão em isolamento social, fazendo o chamado “trabalho em casa”, por vezes com mais demanda e maior carga horária que anteriormente, saindo apenas o estritamente necessário. Na anamnese é possível encontrar sinais e sintomas de maior irritabilidade, mais ansiedade, distúrbios de sono, alteração de apetite, bem como abuso de álcool e drogas. A associação do isolamento social e alterações cognitivas já foi estudado antes mesmo da pandemia, com demonstração da diminuição de áreas do cérebro ligados ao comportamento e à cognição (p.ex. giro denteado, volume de córtex hipocampal e amígdala), porém não há um consenso único desta relação causal. Fazendo um paralelo com um estudo epidemiológico mundial chamado World- FINGER, que avalia fatores no estilo de vida para prevenção de quadros demenciais e aumento da reserva cognitiva individual, a preservação e estimulação do relacionamento social e familiar é item essencial para se atingir esses objetivos. Ainda não conseguimos medir o quanto o isolamento social da pandemia impactará nossas funções cognitivas, porém sabemos que o retorno à rotina anterior é desejável e deve ser estimulado quando possível.3
As alterações cognitivas nos idosos merecem destaque por se tratar de um grupo de pessoas mais vulneráveis tanto às infecções, quanto ao isolamento a que estão submetidos. Observa-se nos pacientes que já apresentavam algum grau de comprometimento cognitivo, mesmo que um Comprometimento Cognitivo Leve ou demência inicial, uma piora do padrão de perda de memória de curto prazo, memória de fixação, mais desatenção e piora de funcionamento executivo. Associado apresentam-se mais desorientados, mais deprimidos e com mais alterações de comportamento como agitação, agressividade e distúrbios do sono. As alterações cognitivas somadas às alterações de comportamento repercutem nas funções de atividades de vida diária, com consequente queixa de progressão do quadro demencial. Havendo infecção pelo vírus, esses pacientes com demência podem piorar seu comportamento e funcionamento de maneira abrupta e intensa, comumente apresentando quadro confusional agudo.
Para muitas pessoas, a doença não termina com a negativação dos exames. Portanto, há necessidade de identificarmos e reconhecermos esses sintomas, bem como investigarmos e compreendermos suas causas e efeitos para então, podermos oferecer o tratamento adequado e melhorar a qualidade de vida dos pacientes e seus familiares.
Referências:
- Cirulli E, Barrett KMS, Riffle S et al., Long-term COVID-19 symptoms in a large unselected population . medRxiv preprint doi: https://doi.org/10.1101/2020.10.07.20208702; this version posted December 1, 2020
- Andrade R A. Os Efeitos da Covid-19. Revista Pesquisa Fapesp.294:18-23. 2020
- World-Wide FINGERS Network: A global risk reduction and prevention of dementia
- Kivipelto M, Mangialasche F,Snyder HM et al. World-Wide FINGERS Network: A global approach to risk reduction and prevention of dementia. Alzheimer’s Dement. 16:1078–1094.2020